quarta-feira, 19 de março de 2008

Mudança de Domínio

Informamos que o site do Blog Impressões Literárias mudou para http://impressoesliterarias.wordpress.com/.

Esse blog será desativado mas ainda continuará disponível para visualização. Novas postagens serão feitas na WordPress.

Atenciosamente

IL

quarta-feira, 12 de março de 2008

Casa Tomada, Amnésia e a destruição da memória.




Casa Tomada é um conto de Julio Cortázar que foi primeiramente publicado na revista Anales de Buenos Aires por Jorge Luis Borges, e depois compilado com outros contos do autor no livro Bestiário, de 1951. Não pretendo fazer aqui uma análise formal do conto de Cortázar, muito menos fixar uma interpretação de revelaria o sentido último do mesmo. Os bons contos, principalmente os de Cortázar, são finalizados na cabeça do leitor, sem a pretensão de respostas fáceis e ordinárias.

Não obstante o universo infinito de interpretação, existem limites a serem respeitados dentro da leitura de um texto. Como na geometria euclidiana, um segmento de reta contém infinitos pontos, mas ainda assim não abrange a totalidade de pontos do plano em que está traçado. Tenho apenas o objetivo de articular as possibilidades de leitura do conto de Cortázar com uma temática que julgo importante, mas que ao mesmo tempo é suscitada pelo conto: a questão da memória e do esquecimento.

O enredo é relativamente simples: o narrador e sua irmã, Irene, imersos na trivialidade da realidade cotidiana, têm a casa onde residem tomada. Tomada pelo que? Não sabemos. Forças ocultas, entidades insondáveis, forças irracionais, difícil dizer. Entretanto, Cortázar se utiliza neste conto de um recurso metafórico clássico: a realidade objetiva da casa como representação da realidade subjetiva dos personagens.

Desde o princípio do conto a casa é a figuração de uma preservação: a memória dos parentes, da infância e da história dos personagens. Não é a toa que a casa é grande e espaçosa, Irene e seu irmão já não são jovens, e ambos chegaram a um estado de suas vidas onde a companhia de cada um lhes bastava. Dentro desse universo estruturado, tingido pela coagulação da memória, a casa desempenha o papel de espelho material desse universo preservado. A vida é rotinizada, bem com a relação entre os personagens: fazem sempre as mesmas coisas, nos mesmos horários, do mesmo jeito. O imobilismo dessas relações e rituais cotidianos representa a fixidez de suas histórias e da memória, que deve ser sempre límpida, constantemente relembrada e vivenciada: "Fazíamos a limpeza pela manhã, levantando-nos às sete(...)Era agradável almoçar pensando na casa ampla e silenciosa e em como nos bastávamos para mantê-la limpa".

Frente à preservação e à conservação, o esquecimento e a destruição da memória: a parte dos fundos é tomada. Parte esta (além da porta de carvalho) que raramente era visitada, a não ser dentro do itinerário diário de tirar as poeiras dos móveis. A coloração da vida perde mais alguns tons: a biblioteca com livros franceses, um par de chinelos, um cachimbo de zimbro, todos prisioneiros da parte tomada da casa. A penosa existência depois do grave acontecimento dura pouco. A realidade volta a tomar os contornos fixos de uma renovada realidade imóvel, constante, sempre existente, e os personagens seguem em seu cotidiano ordinário e regulado. Nós somos o que nós lembramos que nós somos, e como bem coloca o narrador do conto: "Estávamos bem, e pouco a pouco começávamos a não pensar. Pode-se viver sem pensar." Conjuntamente com a destruição da memória e da história, o esfacelamento das identidades, da vida material necessária para sustentação da saúde psíquica, da realidade confortável e bem contornada.

A perda material dos indícios da realidade existente leva, como que por presdigitação, ao esquecimento da realidade perdida e, por conseguinte, à sua inexistência. A oposição conceitual entre realidade e linguagem é quebrada. Ambas estão entranhadas, e já é impossível distinguir uma da outra. O mundo não está “lá fora” pronto para ser descoberto, é preciso também produzir o mundo, torná-lo inteligível, inseri-lo dentro do universo conceitual que nos permita transformá-lo.

A mesma coisa acontece com Leonard Shelby, personagem do filme Amnésia, de Christopher Nolan. Sua identidade, memória e história são cacos estilhaçados de um espelho partido, onde sua figura é refletida de maneira vacilante e disforme. Na tentativa de montar o quebra-cabeça, Leonard cai em contradições, falsos fins e falsos começos. Sua incapacidade de reter novas memórias o torna incapaz de se reconhecer frente a sua auto-imagem, em um presente contínuo eterno, onde não existe tempo, nem causalidade, nem cura. Tempo imóvel que não arrefece o instinto de vingança, não distende a dor, mesmo que o assassino de sua mulher já esteja morto. Mesmo que ele tenha o matado, ele não sabe, ele não se lembra.

Leonard diz, em certa parte do filme, que sua mulher precisa de vingança, e se convence de que mesmo sendo incapaz de lembrar, a memória não muda a significação de seus atos. Leonard era um detetive, seu trabalho se baseava em evidências, provas concretas, indícios consistentes. Como ele mesmo diz, a memória pode mudar a cor de um carro, a fisionomia de um rosto, o dia exato de um acontecimento. Mas provas são imutáveis, inalteráveis e, acima de tudo, confiáveis. Por isso as tatuagens: sendo incapaz de reter os fatos em sua memória, Leonard os retém fisicamente, materialmente em seu corpo, como uma maneira permanente de tomar notas. Leonard rejeita o relativo e o impreciso, pois busca a revelação da realidade, e de sua verdade, como se ela estivesse materialmente fixada na cor de um carro, na fisionomia de um rosto, no dia exato de um acontecimento. Mas é preciso lembrar: o contrário de relativismo não é “a verdade”, é o absoluto, a tragédia sem fim, eterna, imutável.

Não obstante tratem de uma mesma percepção da importância da memória para a manutenção do conhecimento, da realidade e da identidade, o filme Amnésia e o conto Casa Tomada possuem itinerários invertidos. Enquanto Leonard recorre a indícios, vestígios e reminiscências materiais do passado para remontar uma realidade perdida, os personagens de Casa Tomada contemplam passivamente a destruição da suas memória e história, e, por fim, de suas identidades. Irene e seu irmão, assim como Leonard, são assaltados pelo absoluto, pela corrosão incontornável da realidade, pelo esquecimento.

Em contrapartida, o antípoda alegórico dessa realidade dentro do universo literário é representado por Jorge Luis Borges em seu conto Funes, o memorioso, do livro Ficções. Funes nunca se esquece, não tem capacidade de abstração, nem articulação intelectual, pois o topos de sua tragédia está localizada no registro oposto: a incapacidade de esquecer, a incapacidade de refrear as lembranças. Sua inépcia em lidar com o mundo reside em sua incapacidade de entendê-lo formalmente, de maneira abstrata. A realidade transborda para todos os lados em uma miríade de relações impossíveis de serem captadas.

Seja em Casa Tomada, no filme Amnésia ou em Funes, o memorioso, as relações entre memória e esquecimento estão estruturadas de maneira a revelar uma mesma congruência: que elas possuem uma importância muito maior para a construção e preservação da nossa realidade e do nosso conhecimento do que estamos dispostos a reconhecer.