*
O conto, como forma narrativa, envolve alguns elementos estilísticos e formais que, em uma primeira leitura, podem parecer muito intrincados e peculiares, de forma que a sua leitura e decifração exigem um compromentimento visceral do leitor com o texto. Um conto pode ser lido de muitas formas, suas significações mudam de acordo com os ânimos e o temperamento, suas cores e texturas se dispersam e se coagulam cada vez que nos debruçamos sobre ele. Isso acontece sempre que estamos prontos a perceber os sentidos ocultos que até então nos eram totalmente misteriosos.
Dessa forma, qualquer forma de leitura desinteressada se torna um desastre para o entendimento do conto. A primeira leitura é sempre insuficiente. São necessárias sucessivas releituras, que devem revelar camadas sobrepostas de entendimento e reconhecimento que nos permitam penetrar no enigma daquele conto. E quando isso acontece, temos a sensação de o ter lido muitas vezes como se fosse a primeira. Esse é o grande barato de ler contos. Sua capacidade mutante, instável, que vacila e que não fixa por si só o sentido da ficcionalidade ali posta. O conto, como forma de narrativa, nada mais é do que uma linguagem, e ser alfabetizado não é o bastante para dominá-la em suas diversas formas, em seus múltiplos dialetos. Como o Pedro bem me disse uma vez, toda forma de arte é uma linguagem que deve ser dominada e aprendida, no intuito de revelar os sentidos escondidos de uma realidade essenciamente sem sentido, transbordante. Talvez, me arrisco a dizer (ou foi o Pedro?), esse contato com a realidade, essa re-ligação primordial, sua compreensão e comunicação (ação de tornar comum), seja o fim último da arte - da boa arte, pelo menos.
Existem alguns excelentes. Uma casa que é tomada por elementos insondáveis (Casa Tomada, Julio Cortázar), um objeto esférico que concentra todo o universo (O Aleph, Jorge Luis Borges), o amor que paralisa um pintor como uma morte dilacerante (Os Amigos, Juan Carlos Onetti). Neles, o absurdo e o fantástico, o impossível, as fissuras da realidade que revelam a constante e ameaçadora falta de sentido, sempre pronta a atacar e destruir, a contrapelo, o cotidiano trivial e ordinário. Contos que se abatem sobre nós com uma força avassaladora e que tentam descortinar todo um universo de coisas que não sabemos, que nem conseguimos imaginar. Ao meu ver, essa deve ser a função de um conto, essa me parece sua principal proposição em termos de conteúdo, independetente de suas variações formais. Mais do que isso, essa deve ser a função da literatura. Sem mais.
* Julio Cortázar tocando trompete
quarta-feira, 23 de janeiro de 2008
Minhas impressões sobre o conto.
Publicada por
Rodolfo
à(s)
18:24
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
1 comentário:
Tentando ir além: a alfabetização para o conto - talvez até segundo Piglia, o de minha última postagem -, o aprendizado da linguagem, o domínio dos códigos, é único para cada conto específico.
Interligado ao aprendizado da "linguagem dos contos" e da "linguagem de determinado autor ao escrever contos", este processo me parece dependente de algo que, creio, chama-se "idioleto", o dialeto de uma só pessoa.
É mais fácil ler um conto de Machado de Assis após ter lido outros contos, de outros escritores. Talvez mais fácil ainda após ler um dos romances do próprio Machado de Assis. Talvez o leitor esteja muito próximo da linguagem daquele conto específico após ler outro conto de Machado.
Mas o leitor só domina os códigos daquele "idioleto" após a leitura do próprio conto, quando aceita as regras que só valem naquele conjunto de páginas, naquele bloco de texto.
Claro, há questões relativas à qualidade de cada conto, talvez eu esteja falando de bons contos apenas. E nem falaremos de traduções. Boas traduções* e bons contos são conceitos absolutamente questionáveis.
Bem, sem mais.
Pedro
*Borges, cujo primeiro livro foi uma tradução para o inglês do Quixote, sobre o original: "Achei que fosse uma má tradução para o espanhol"
Enviar um comentário